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quarta-feira, 4 de maio de 2011

Defenestração

Para demonstrar o meu amor por Luís Fernando Veríssimo, estou postando a crônica que eu mais gosto. Espero que vocês gostem...


Defenestração (Luís Fernando Veríssimo)
"Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada…
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
- Alô…
- O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo devia ser um barulho que o corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? “Nestes termos, pede defenestração…” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. Defenestração vem do francês defenestration. Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.
- Defenestrações devem ser proibidas.
- Sim um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime.
Todas as janelas do quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima vira crime.
Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: É proibido defenestrar. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestradores. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 17º andar.
- Querida…
- Mmmm?
- Há uma coisa que preciso lhe dizer…
- Fala, amor.
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
-Estou pronta para experimentar tudo com você! TUDO!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada.
Entre gemidos, ele aponta para cima e babulcia:
- Fui defenestrado…
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti."



2 comentários:

  1. Vim conhecer seu blog e gostei. Serei sua seguidora
    Deixo o convite pra conhecer o meu e deixar seu comentário.Espero que goste e siga também. Grade abraço e tenhas uma noite de paz.

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  2. Aew! Valew por recomendar meu blog... linkei o seu também! Abraço
    PODIA ACABAR O MUNDO

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